A controvérsia Tupã - Mahyra


Mahyra é a personagem central de um equívoco que data de cinco séculos: no século XVI, os jesuítas procu­raram descobrir uma entidade sobrenatural que pudesse ser comparada ao Deus cristão a fim de facilitar a catequese. E tudo indi­ca que foi Manoel da Nóbrega quem fez a escolha: “Esta gentilidade nenhuma coisa adora, nem conhece Deus, somente aos trovões chamam de Tupane; que é como quem diz coisa divina. E assim nós não temos outro vocábulo mais conveniente para os trazer ao conhecimento de Deus, que chamar-lhe Pai Tupane”. Não há dúvida que a adoção dessa palavra, com esse sentido, constituiu em mais uma dificuldade para as missões jesuíticas.

De um modo geral, Tupã poderia ter sido melhor definido como um demônio, temido por controlar o raio e o trovão e, assim, consequentemente, a morte e a destruição. Dessa maneira os sentimentos indígenas para com essa entidade são mais de medo do que veneração. Durante a nossa permanência entre os kaapor, por ocasião de uma tempestade, acompanhada de muitos trovões e raios, os índios abandonaram as suas casas, armados de arcos ou rifles, e fizeram vários disparos contra o céu, acom­panhando esses gestos com imprecações raivosas, numa tentativa de dissimular o medo que Tupã lhes inspira. Quando a natureza se acalmou, um deles voltou para casa para guardar o seu rifle, e me disse sorrindo: “Tupã zangado muito”.
Uma melhor comunicação entre os tupis e os jesuítas teria ocorrido se estes tivessem dado atenção às palavras de frei André Thevet (1941): “Os selvagens fazem menção a um grande senhor, chamando-lhe em sua língua de Tupã, o qual, dizem, lá no alto troveja e faz chover; mas de nenhum modo sabem orar ou venerar, nem tem lugar próprio para isto. E se alguém lhes fala de Deus, como o fiz, escutam admirados e atentos, perguntando se o Deus que se fala não seria talvez o profeta que lhes ensinou a plantar essas grossas raízes, chamadas por eles de hetich [mandioca]”. Thevet referia-se a Mairemonan, o herói mítico dos tupinambás, que lhes ensinou a plantar, utilizar o fogo, fabricar instrumentos, além de fornecer-lhes as normas de seu comportamento social, sendo considerado como o grande antepassado dos tupis. Os tupis da Amazônia o chamam de Mahyra, Bahira, Maira ou Mair. 
Do ponto de vista antropológico ele pode ser definido como um herói civilizador, desde que os tupis não têm a ideia de um ser supremo, eterno e criador de todas as coisas, como o Deus cristão. Na mitologia kaapor, Mahyra saiu de um pé de jatobá, em um mundo calcinado por um grande incêndio, plantando novamente tudo o que o fogo queimou. O seu grande feito foi a criação do povo tupi. Tudo começou quando, recém-saído do pé de jatobá, sentiu o desejo sexual. Encontrou, então, uma fruta que lhe lembrou o órgão sexual feminino. Transformou a fruta em uma mulher, com quem teve relações sexuais e gerou dois gêmeos: Kwarahi, o Sol, e Yahy, Lua (para os tupis, Sol e Lua são do gênero masculino). Mahyra, como vimos, não é eterno, mas imortal. Quando envelhece, “faz como as cobras e as aranhas, troca de pele e fica novo novamente” (Ribeiro, 1974). 
Uma das funções de um sistema de crença é ser explicativo. Se Mahyra é imortal, por que não o são os seus descendentes? A resposta está contida na continuação do mito da criação. Após ter criado a primeira mulher – nenhuma variação do mito faz menção ao seu nome – ele construiu uma casa e plantou toda uma roça de milho. No dia seguinte, ordenou que a mulher fosse colher o milho. Esta retrucou que não havia tempo suficiente para o milho ter crescido, o que não era verdade. O herói ficou furioso com o comportamento de sua “Eva” e partiu para o outro mundo, deixando na terra a sua mulher, grávida dos seus dois filhos. É interessante notar que a Eva cristã foi punida por ter colhido uma fruta proibida; a “Eva tupi” por não querer colher o milho e obedecer à ordem de Mahyra. Os dois fatos são antagônicos, mas resultaram em uma mesma consequência: a perda da imortalidade por parte dos homens. Coube a Kwarahi e Yahi continuar a obra civilizadora de seu pai, transformando os homens de seres da natureza em seres culturais. Os primeiros homens misturavam-se com os animais, estes falavam como os homens, tinham casas e usavam arma. Uma variante xinguana fala de relações sexuais entre homens e animais. O próprio Mahyra, em uma variante tenetehara, desconfia que Yahi não é seu filho, mas de Mukura (gambá). Foi Mahyra o autor do primeiro ato civilizatório, ao roubar o fogo dos urubus e entregá-lo aos homens. Os gêmeos, seus filhos, tomaram as armas dos animais, destruíram suas casas e roças, dizendo-lhes: “Vocês não são mais gente agora” (cf. Schaden, 1947). 
Em todas as religiões indígenas, não se pode esperar uma estrutura que funcione dentro de uma lógica que é nossa. Os tupi guaranis se consideram descendentes de Mahyra, mas não têm uma genealogia mítica para tornar clara essa descendência. Não se preocupam mesmo em explicar com quem os gêmeos, do sexo masculino, se casaram para dar continuidade à estirpe de Mahyra. Ao contrário do texto bíblico que explica que Caim teve que buscar uma esposa ao “leste do Éden”, o mito tupi omite essa informação. Em todo caso, imaginam que outras mulheres deveriam existir, porque o que Mahyra fez foi, apenas, criar os tupis. O mundo já existia antes dele, que saiu de um pé de jatobá em uma terra destruída por um grande incêndio. Mas não é importante saber quem são as mulheres em uma sociedade fortemente patrilineal, pois os filhos descendem apenas do pai. É por tudo isso que até hoje os kaapor exclamam ao verem uma estrela cadente deslocando pelo céu: “Lá vai Mahyra, o nosso avô!”.
por Roque de Barros Laraia


Editado por Bacana
Texto original: http://www.usp.br/revistausp/67/01-laraia.pdf

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